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"Eu olhei no espelho e ví o reflexo de uma mulher": Yamê Aram conta como foi sua descoberta.




Eu olhei no espelho e vi o reflexo de uma mulher. Nem passou pela minha cabeça questionar porque o reflexo daquela mulher nunca tinha aparecido em nenhum espelho que olhei durante vinte e sete anos de vida. Mas aquele reflexo no espelho, daquela mulher, era realidade. Ali aconteceu minha transição de Dener Guerreiro para Yamê Aram e de homem-gay para mulher-transexual. O homem-gay que até aquele momento havia existido, era real, mas não era a realidade inata do meu ser. O reflexo daquela mulher que eu estava vendo refletido no espelho, sim.


Como Dener Guerreiro eu havia chegado a todos os meus objetivos como cantor de música erudita. Tinha estudado com os melhores professores de música do país, especialistas em música barroca e música renascentista, era solista de uma excelente orquestra de música antiga, possuía um registro vocal raro de sopranista, o que já me colocava em destaque. Minha carreira estava completamente traçada e engatilhada. O curumim nascido em Parintins no Amazonas havia vencido todos os obstáculos e chegado ao ápice dos seus sonhos. Meu próximo objetivo seria cantar na Europa. Mas, como na música erudita, você não faz sucesso gravando um vídeo e postando na internet, você precisa ter o nome de um grande professor atrás de você, eu estava estudando a técnica de canto Bel'Canto e a técnica Alexander com uma professora chamada Norma Silvestre, a maior autoridade em canto do país, para poder alçar vôo além mar.

Ainda estasiada com o reflexo da mulher no espelho, uma coisa era certa na minha mente "EU ERA UMA MULHAR TRANSEXUAL!". Disso eu não tinha dúvida. Não havia ninguém comigo. A casa estava completamente vazia. Liguei tudo que podia fazer barulho. Um buraco silencioso estava me devorando por dentro. Eu estava tomando a segunda garrafa de vinho do Porto. Uma mistura de liberdade, euforia, ansiedade, vontade de chorar, mas parecia um choro sufocado que não queria sair de jeito nehum, tomaram conta de mim. Voltei novamente pra frente do espelho do quarto da minha saudosa amiga. Olhei, e era o mesmo reflexo da mulher que eu havia visto antes. Eu era uma mulher. Bastou um reflexo num espelho e a imanencia da minha transexualidade transcendeu toda a estrutura que havia sido gerada em mim, pela minha família, pela cultura, pela religião e pela sociedade que convivi. Mas e agora? Como transexual eu não cabia mais dentro do mundo da música erudita. Tudo o que eu tinha construido proficionalmente desmorou diante da realidade do reflexo da mulher no espelho. Eu já era efeminado demais, tinha maestros que não gostavam de mim, por causa do meu jeito muito feminino, e agora ainda tinha virado uma transexual! Não teria como eu continuar minha carreira como cantor erudito. Mas uma coisa era certa, eu continuaria vivendo como a mulher refletida no espelho.Corri pro computador, e comecei a procurar nomes para me nomear. Foi quando eu encontrei Yamê, que significa AQUELA QUE PRODUZ, é uma árvore, e depois encontrei Aram, que significa SOL, é como os caboclos que moram no interiorzão do Amazonas chamam o sol. Assim eu fiz a transição do meu nome, e a partir daquele momento eu nasci. Nomeada ainda por mim mesma, mas acredido que o conhecimento tornará o homem mais tolerante, e poderemos ter direito ao nosso nome social, a sermos chamadas pelo nome que nos noemeia, e não por como querem nos nomear. 

Fui até meu guarda-roupa, tirei tudo pra fora e joguei na caçalda. No outro dia acordei cedo, e fui comprar minhas roupas de mulher. Meus amigos foram os primeiros a se assustarem comigo, muitos se afastaram e nunca mais quiseram falar comigo. Outros, fui eu quem afastou porque negavam e não aceitavam minha condição imanente como transexual. Queriam continuar me chamando no masculino, mas eu não aceitei pois me machuca muito quando alguém me trata no masculino. Quando cheguei na escola de música onde trabalhava, todos se assustaram com minhas roupas. Parecia que uma nave espacial havia descido na frente da escola e um aliem estava descendo pra fazer aula de música. Fui direto no diretor da escola, e já o informei que a partir daquele momento eu queria assinar minha folha de pagamento como Yamê Aram. Ele tomou um susto, deu uma tussida e disse-me: -Yamê Aram, é assim que pronuncia seu nome, não é?


-Sim. É assim que o pronúncia.

-Então...não se preocupe pois todos aqui irão respeitá-la e tratá-la como você quer. Ninguém aqui irá maltratá-la ou desrespeitá-la. -Esse diretor era evangélico e teve uma atitude louvável para comigo. Como a grande maioria dos meus alunos era adolecente, levei um ano transicionando dentro da escola, mudando minhas roupas -que foram ficando cada vez mais femininas- transformando minha forma de pensar e de agir, pois eu era outra pessoa, e precisava conhecer quem eu era de verdade. Mas para minha surpresa, não houve resistência por parte dos meus alunos adolecentes em aceitar minha condição como transexual transicionando de homem para mulher. Eles adoraram. Até fizeram vários trabalhos escolares usando-me como material de pesquisa. Tiraram muitas fotos comigo, principalmente à medida que eu ia ficando mais feminina e mais mulher. Isso me deu muita força naquele momento que o meu mundo havia desaparecido, e um novo mundo estava se construindo em cima da mulher que havia mostratado seu reflexo no espelho.

Diante do reflexo da mulher no espelho, uma outra coisa também veio em minha mente: Eu, Yamê Aram não teria mais uma carreira promissora dentro da música erudita como cantora; Não havia lugar para uma transexual dentro daquele universo fechado de pessoas eruditas; Eu não era mais um cantor, um homem, um gay, mas sim, uma mulher transexual recém nascida, e tudo estava diferente para mim. Como transexual, eu precisava construir tudo novamente, nome, carreira, fama e o meu conceito artísitico. Foi nesse momento que a internet entrou em minha vida. Um amigo meu, professor de redação na escola federal CEFET MG, no campos de Divinópolis, disse-me que eu deveria abrir um blog para escrever as histórias de minha vida no interior do Amazonas. Imediatamente eu sentei na frente do computador, abri o blog, e já comecei a escrever. Contando principalmente as histórias do tempo que vivi no meio da mata amazônica. O blog chama-se A VOZ DA SELVA AMAZÔNICA, que hoje já está com mais de 172.000,00 acessos (www.yamearam.blogspot.com.br). Também comecei a escrever em todas as minhas redes sociais, dando início à criação do meu sujeito. Como minha carreira estava construida em cima de Dener Guerreiro, o cantor, abri um outro blog chamado ESPAÇO MUSICAL YAMÊ ARAM (espacomusicalyamearam.blogspot.com.br) onde comecei a escrever, principalmente, sobre as técnicas de canto que eu possuo e trabalho já há um bom tempo. Todo esse processo de escrever, das redes sociais, do blog, me ajudou a conhecer a mim mesma. Como transexual, eu nasci sozinha, e sozinha construi minha identidade, meu carater, minha carreira novamente, meu nome, minha aparencia, meus gestos, e tudo que estar e faz parte do universo de Yamê Aram.

Foi nesse momento também, de construção social da mulher transexual que eu era, que apareceu um ex-aluno meu, que havia tido aulas de canto comigo há uns anos atrás. Ele era muito talentoso, mas estava sem dinheiro naquela época, e eu diante do seu talento, logo lhe ofereci uma bolsa de aula. Anos depois, exatamente no momento mais importante de toda minha vida, pois eu precisava me construir novamente aos vintes e sete anos, profissionalmente, emocionalmente, psicologicamente e socialmente, eu não sabia direito para onde ir ou o que fazer, ele reapareceu na escola onde eu trabalhava, e me propôs abrirmos uma escola de música, e assim nasceu o Espaço Musical Yamê Aram, localizado num dos Bairros mais charmosos de Belo Horizonte, especializado em canto, onde eu também fui professora até o dia dezoito de dezembro de 2015, função que exerço com maestria devido às técnicas que aprendi com minha grande mestra, Norma Silvestre. Hoje quem assumiu minha cadeira de professora de canto na minha escola de música, foi uma ex-aluna minha. Eu mudei pra Arraial d'Ajuda na Bahia. Estou morando num verdadeiro paraíso. Quero me dedicar mais a escrever, ao meu blog, terminar um livro que vai se chamar "COMO A SELVA", transformar o meu corpo em como eu sou em minha mente, e fazer a cirurgia de readequação sexual, a mudança de sexo, dar continuidade ao processo de retificação do meu nome, que foi aceito e atestado pela Defensoria Pública de Minas Gerais, a qual também me deu o laudo psicológico que atesta minha transexualidade e a necessidade do tratamento médico para o processo de transexualização que preciso passar. Mas esse tratamento ainda é muito difícil de transexuais e travestis terem acesso. Até hoje eu não consegui esse tratamento pelo SUS. Como não tenho coragem para me alto hormonizar, fico sofrendocom um corpo que não é meu.


O curumim chamado Dener nascido em Parintins, que arrancou mandioca, que remou três horas pra ir três horas pra voltar, todo santo dia, pra poder estudar, numa escola chamada 15 DE NOVEMBRO no interior de Barreirinha, um município do Estado do Amazonas -e olha que o Dener morava perto, agora tinha outros, tadinhos! Que remavam oito horas por dia pra estudar. Não lembro de nenhum deles reclamando de cansaço! - sabia que sua única chance de sair daquela realidade cabocla, onde, com certeza, ele não sobreviveria, era a sua inteligencia. Esta lhe ajudaria correr mundo e conquistar seu sonho. Seu futuro não era no Amazonas. Não foi no Rio de janeiro. Não aconteceu em Brasília. Mas o encontrou em Minas Gerais, por isso, meu presente está na Bahia. O curumim chamado Dener existirá em minhas histórias agora. Seu passado não faz parte mais de mim. Ele morreu na transição da minha transexualidade. Não o nego. Mas também não o vejo mais em minhas lembranças. O reflexo da mulher no espelho está tomando todas as minhas memórias, e se apropiando delas. Quanto mais eu me conheceço como mulher transexual, mais a imagem do curumim chamado Dener deparece e a imagem daquela mulher torna-se realidade imanente do meu ser.


Minha história de vida mostra que podemos contruir nosso futuro. Que somos muito mais do que somente um fruto de uma sociedade. Que todas as dificuldades podem ser transformadas em grandiosas vitórias. Que um homem pode virar mulher. Que um curumim pode virar uma cuiantãe. Que uma transexual pode ser uma empresária de sucesso. Que todos temos direito à uma vida justa. Meu nome é Yamê Aram, sou uma mulher transexual de 35 anos. Hoje estou construindo minha família junto com amigos. Uma família que nós decidimos construir segundo o respeito, a amazidade, a lealdade e o amor. Acredito que isso será a família do futuro.





Depoimento de Yamê Aram concedido a Leandro Casimiro para a Love & Pop.

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